A literatura portuguesa passou
por diversas mudanças desde os tempos da navegação até a contemporaneidade. A
forma de se contar uma história passou por um processo de desenvolvimento e de
aprimoramento artístico e literário, em que se usava tanto noções de
subjetividade quanto objetividade, cuja produção de conhecimento busca uma
verdade absoluta dos fatos, ao contrário de uma subjetividade que está fora do
processo desse tipo de escrita.
A produção da narrativa, com seus
elementos narrativos, vem a desenvolver uma análise mais subjetiva de fatos. A
priori, o que muitos tentam perpetrar é uma análise da relação entre fato e
ficção: em que pontos esses dois elementos poderiam se cruzar? Como seria
possível haver ficção dentro de fatos reais, ou seja, como ficcionar a
realidade?
Saramago foi um daqueles
escritores que souberam como nunca utilizar a literatura como ninguém. Por meio
de uma linguagem coloquial e corriqueira, como em crônicas, o escritor soube,
por exemplo, utilizar os sinais de pontuação de modo “solto, lúdico e subjetivo”.
Foi de um modo diferente que Saramago conseguiu delinear com minúcia fatos
aparentemente sem importância, mas que davam outro relevo para a leitura de
seus romances. O romance O memorial do convento, publicado em 1982,
foi um dos excelentes romances do escritor José Saramago. Provavelmente, para
muitos críticos há certa dificuldade em se classificar o romance em um
subgênero literário, apesar de muitos acreditarem que se trata de um romance
histórico.
É nesse meio, entre romance
histórico e crônicas de costumes, em que O Memorial do convento se
encontra: um tipo de obra que procura tanto mostrar uma análise sobre Portugal
do século XVIII e um tipo de romance que delineia o espaço social desse
momento. Saramago procura tanto mostrar um pedaço da história de Portugal como
discutir as relações entre os indivíduos da sociedade portuguesa através de
seus personagens (cada um representando uma camada social). A priori, pode-se
dizer que o romance é escrito como uma sátira religiosa de forma muito irônica,
fazendo comparações no contexto da obra com a realidade de Portugal. Na Europa,
a Igreja católica passava por enormes conflitos internos e externos com a
Reforma e a Contrarreforma, fatores cruciais para a insatisfação de boa parte
dos fiéis. No trecho a seguir, o narrador do romance afirma:
Mas não falta, por isso mesmo falecendo
mais facilmente que morra por ter comido pouco durante toda a vida, ou o que
dela resistiu a um triste passadio de sardinha e arroz, mais alface que deu a
alcunha aos moradores, e carne quando faz anos sua majestade. Quer Deus que o
rio seja pródigo de peixes, louvemo-los aos três por isso. [...] mas esta
cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de
escasso para outro, não havendo portanto mediano termo entre a papada pletórica
e o pescoço engelhado, entre o nariz rubicundo e o outro héctico, entre a
nádega dançarina e a escorrida, entre a pança repleta e a barriga agarrada às
costas. Porém, a Quaresma, como o sol, quando nasce, é para todos.
Neste trecho, há certa descrição
das formas de controle que havia em Portugal durante o século XVIII, formas que
continuaram a existir até o século seguinte. São essas estruturas sociais que,
de certa forma, vão nortear o rumo do romance, além de se destacarem as
questões políticas de dominação do povo e, assim, pode-se dizer que “o livro é
uma metáfora do capitalismo”. O narrador vai tratando o caso da religião como
um embate entre o que seria considerado religioso – como a Inquisição, os
Autos-de-fé e as Procissões – e o que seria profano – como os entrudos e as
touradas. Uma crítica é um tipo de descrição do período setecentista, época em
que houve muita censura por parte da Igreja Católica.
Para época, seria um tipo de
situação de favores marcados fortemente por características da Igreja que era
crucial para fortalecer pactos entre nações, como na seguinte passagem do
romance. Este tópico é essencial para se entender a relação entre o momento
histórico do século XVII em Portugal e o momento em que o livro é escrito.
Relacionam-se esse poderio da inquisição com a ditadura salazarista em que
houve muito esforço por parte do governo português para se reprimir a força do
povo, que, assim, seria uma metáfora ligada às pessoas que construíram o
Convento de Mafra a pedido do rei D. João V, algo paralelamente relacionado a
população portuguesa que viveu durante a Ditadura. Saramago deixa claro essa
relação quando descreve Baltasar, que “foi mandado embora do exército por já
não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda”.
No capítulo 23 do Memorial
do convento, por exemplo, Saramago começa narrando o casamento
da infanta Maria Bárbara com o príncipe D. Fernando de Castela e o casamento do
príncipe de D. José com Mariana Vitória. É uma parte que fala muito da relação
histórica entre Portugal e Espanha, e uma parte que Saramago discute muito para
debater sobre a política e história portuguesas, principalmente na época em que
se passa o enredo do romance.
Não são as
combinações do pé para a mão, os casamentos estão feitos desde mil setecentos e
vinte e cinco. Muita conversa para conversa, muito embaixador, muito regateio,
muitas indas e vindas de plenipotenciários, discussões sobre as cláusulas dos
contratos do matrimônio [...]
Em boa parte do capítulo,
Saramago vai narrar essa parte histórica entre os dois países – Espanha e
Portugal. Em uma dessas partes, narra-se o trabalho de João Elvas no arranjo
das ruas, após a chuva torrencial, para que o carro da rainha e da princesa
possa prosseguir para Montemor, e a chuva ainda prosseguiu durante a ida para
Évora. Durante a viagem para Évora, a princesa afirma que desconhece o contento
que se está a erguer em favor de seu nascimento, depois de ver homens presos a
serem enviado para trabalhar em Mafra. Todo
o capítulo envolve a viagem da princesa e do príncipe para poderem se casar. Ao
longo dessa viagem acontecem diversos problemas com a chuvas e discussões
sobre, por exemplo, a suspeita de que Baltasar voou com Bartolomeu de Gusmão.
Somente no final do capítulo, quando se passaram oito dias após a saída de
Lisboa, é que ocorre a cerimônia da troca de princesas peninsulares.
Fazer uma relação entre os
povos portugueses dessas diferentes épocas seria um modo de tentar
realizar uma comparação entre as temporalidades das coisas, ou seja, dos fatos
históricos em Portugal ocorridos em épocas diferentes. Assim, “o fato de
Baltasar ser maneta, por exemplo, apresenta-o como personificação do povo, que
construiu com as próprias mãos a nação e sem nada ficou”. É uma analogia que
Saramago faz ao desejo do povo português, povo que trabalhou arduamente para a
construção do convento de Mafra e parece ser sempre a camada menos importante
da história de Portugal.
Esse e um dos aspectos mais
importantes que Saramago vem a descrever em seu romance: ao invés de escrever
um romance se apegando nas camadas mais ricas e importantes da
sociedade portuguesa – a corte real, por exemplo -, percebe-se uma apologia à
força dos operários do convento. É perceptível, nesse caso, a forma como se
tratam as camadas sociais: “[...] as estruturas de dominação são impessoais,
sistémicas, técnicas, quase brancas: o Governo, a Administração, o Centro, a
Cidade”, enquanto que “os heróis têm nome e identidade”. Saramago mostra a
força do povo, cuja vontade é a maior na construção do povo. Percebeu-se que um
dos pontos mais criticados pelo escritor foi o ponto de vista político, visando
a uma ideologia que confrontasse a classe social que mais dominava e assolava
os mais fracos: os poderosos políticos contra o povo, sendo este quem realmente
tinha força por poder promover os mecanismos principais para o desenvolvimento
da sociedade.
Trata-se de um convite a uma
crítica pesada contra os grupos sociopolíticos que agia de modo áspero contra o
povo: a má administração do Governo que não cuidava de pontos
importantes da sociedade; uma Igreja católica que mentia para os seus fiéis,
infringindo as leis religiosas: tudo isso numa comparação entre a riqueza da
coroa e do clero portugueses e a miséria do povo. É deste modo que podemos
verificar como Saramago conseguiu, através de seus personagens únicos (fala-se
dos heróis do Convento, o próprio povo), mostrar as divergências na
sociedade portuguesa de épocas diferente.